segunda-feira, 23 de maio de 2011

Na trilha do Morro da Boa Vista


O trilhismo também tem seus clichês. Um deles é reforçar a ideia que toda caminhada dura leva a um destino recompensador. Assim, mesmo sob extremo cansaço, desidratado e prestes a desistir, o trilheiro renova suas energias e segue adiante. Após tanto sofrimento, ele terá direito a algo que realmente valha a pena. Pois esse clichê e outros tantos têm lá suas parcelas de verdade. A Trilha do Morro da Boa Vista é um exemplo.


Para trilhar esse caminho, siga para o sul da Ilha de Santa Catarina, na direção da Lagoa do Peri. Indo pela SC-406, contorne o Morro das Pedras e fique esperto, pois logo adiante à direita está a entrada do Parque Municipal da Lagoa do Peri. 


A lagoa em si já é um visual à parte: uma porção de água doce de tom caramelado e serena como a brisa. A moldura é a densa mata que se avista ao longe. Garças brancas e pássaros de outras cores dão rasantes na superfície imperturbável da lagoa, cuja água ajuda a abastecer as comunidades no sul da ilha. Pescadores se aventuram no canal da lagoa, profundo e com correnteza traiçoeira, e até mesmo um jacaré do papo amarelo mora por lá, reza uma das lendas locais.

Apesar dessa exuberância toda, o destino do domingo era outro, mais belo ainda e isso iríamos descobrir horas depois. O Morro da Boa Vista fica ao norte da Lagoa do Peri. Para ter acesso, há trilhas bem sinalizadas no início, como a da Pitangueira, com caminho amplo, na maior parte do tempo plano e cercado por árvores e relva. Por cerca de 40 minutos, o caminhante apenas passeia, podendo ouvir pássaros, ver plantas e flores, tendo um contato mais light com a natureza.

Mas a trilha do Morro da Boa Vista é de intensidade difícil devido às subidas íngremes e ao terreno local, muitíssimo prejudicado pelas chuvas da semana. Resultado: muito esforço pra subir, muita lama, escorregões e tropeções à vontade.

Para chegar à Boa Vista é necessário suar muito. O Dois na Trilha trouxe um terceiro elemento, de quase sete anos, o que trouxe também preocupações de tombos adicionais. O terceiro elemento não decepcionou por seu preparo físico e disposição, mas sempre é bom avisar: se você não tem um filho super-herói, não traga. Desta vez, tínhamos conosco o Hulk e Harry Potter.

O cume fica a cerca de 200 metros do nível do mar, o que pode gerar incredulidade do leitor: ora, só isso? E cansa tanto?! Sim, cansa. É a metade do que fizemos na Trilha da Pedra Branca, mas a intensidade das subidas e as muitas paradas que fizemos (para que as pessoas recolhessem as línguas que estavam sendo arrastadas pelo caminho) dobraram o cansaço.

Mas vamos lembrar do clichê: uma caminhada dura leva a um cenário recompensador. Por quase duas horas, os trilheiros não apenas evitaram os vexames dos tombos, mas também mantiveram o moral alto. Mesmo mortinhos de cansaço, mantiveram o bom humor e a criatividade. Um dos rapazes à frente da fila decidiu criar uma nova igreja, recheada de misticismo e machismo. “O lema é um só: a mulher que serve ao homem, serve a Deus!”, disse, convicto. A proposição ganhou rapidamente adeptos do sexo masculino, que passaram a seguir seu novo líder. Mas a igreja não durou cinco minutos: uma das trilheiras argumentou sagazmente que a seita teria apenas homens como fieis, e com isso, a igreja implodiu.
(a diagramadora optou por ilustrar o brilhante comentário com o flagrante de aranhas visualizadas pelo caminho)

Mesmo diante de tanta dificuldade para subir, outros trilheiros passaram a ter ideias mirabolantes. (Sim, o cérebro é severamente afetado nessas condições). Para vencer o morro íngreme, o pequeno Vinicius desenvolveu um modelo de propulsão a gás, o que permitiu que ele subisse alguns metros de forma bem ligeira. O sistema causou um efeito colateral: ninguém queria ficar atrás do menino. A brilhante ideia foi também abandonada no caminho.

Marcio, por sua vez, quis implementar uma nova metodologia de rolamento em pirambeiras. Chegou a fazer um primeiro teste, mas foi desaconselhado por sua esposa, Cris, temendo consequências mais graves ao ecossistema local. Na queda, Marcio abriu uma clareira próximo à pedra final do Morro da Boa Vista.

Mas o que leva pessoas em situação extrema ter ideias tão originais? A equipe de neurocientistas do Dois na Trilha explica: em momentos de tensão, medo e angústia, os seres humanos mobilizam seus sistemas de recompensa, estrategicamente localizados nos sistemas límbicos de seus cérebros. A pessoa estabelece uma meta pessoal e canaliza seus esforços para alcançá-la. À medida que vai se aproximando da conquista, renova energias (extrai essas energias não se sabe de onde!!!) e reprograma seu organismo para vencer limites. No caso dos trilheiros do domingo, o sistema límbico se encarregou não apenas de impulsionar os corpos cansados, mas também fez os cérebros extrapolarem suas capacidades habituais (ok, um dedinho de cachaça também pode ajudar).

O sistema de recompensa permitiu, inclusive, que algumas trilheiras enfrentassem um marimbondo (sim, um só!) apenas com seus gritos lancinantes. Acuadas pelo inseto letal, as caminhantes atuaram em grupo, de forma coordenada, e soltaram seus berros, desestabilizando o atacante. Apesar de seus muitos esforços, a equipe de entomologistas do Dois na Trilha não conseguiu localizar o corpo da vítima.

Após suarem barris, os trilheiros chegam ao ponto máximo de sua aventura: o cume do morro. A pedra é estreita e nem todos podem alcançá-la ao mesmo tempo. Dividimo-nos em grupos menores, que sobem alternadamente. Lá de cima, um visual extasiante, deslumbrante, emocionante, luxuriante. Pode-se enxergar a quilômetros de distância e quase que num raio de 270 graus. Vê-se boa parte do sul da Ilha, o Campeche, a ilha de mesmo nome, o Aeroporto Hercílio Luz, o bairro que o circunda, parte da praia do Morro das Pedras, e mais adiante as pontes que ligam a Ilha ao continente e um infinito Atlântico.

(foto: Fazendo Trilhas)
Vitoriosos, os trilheiros fazem um lanchinho, mas se alimentam mesmo é da paisagem única. Mirante inigualável, ponto de vista irrepetível. Temos sol e temos vento forte. Esse mesmo vento que sacode as madeixas das trilheiras massageia os rostos dos mais carrancudos e cansados, e provoca sorrisos e gargalhadas. Todos estão muito felizes, surpresos com a Boa Vista e maravilhados com o privilégio de lá terem chegado. Todos estão renovados. Que bom! Pois a descida não é tão fácil quanto se pensa, e os tombos nos esperam a cada passo displicente. Não tem problema. Agora, está renovado o objetivo também: chegar são e salvo lá embaixo para almoçar, mesmo depois das quatro da tarde, é tudo o que se quer. Retornar pra casa sãos e salvos - embora apertados no banco de trás do carro - também...

(foto: Fazendo Trilhas)

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